Uma das formas atuais mais recorrentes de se associar tecnologia e cidades é por meio da ideia de smart cities ou cidades inteligentes. O conceito se popularizou nos últimos anos e vem sendo usado com significados diversos. Em geral, se refere às transformações digitais na organização da cidade e à incorporação intensiva de tecnologias da informação e comunicação nos serviços públicos. A visão associada a essa ideia é de uma cidade intensamente conectada e funcional, com a relação entre poder público e as pessoas fortemente mediada por tecnologias avançadas.
Altamente sedutora, essa ideia de cidades inteligentes tem sido incorporada às agendas e estratégias de desenvolvimento urbano de governos ao redor do mundo, como é o caso da Índia. Por outro lado, também tem sido muito utilizada por empresas que buscam vender serviços que seriam necessários para construir esse tipo de cidade. Obviamente, não podemos e tampouco queremos impedir esse setor de negócios de desenvolver seus produtos e serviços ou condená-lo por saber vendê-los. Por outro lado, é papel dos governos sempre proteger e promover o interesse público e contratar serviços e produtos que de fato atendam às reais prioridades da cidade – e não apenas adquirir produtos porque são “os mais modernos” ou porque tem o “selo smart city”.
A associação entre tecnologia e cidades também é óbvia quando pensamos nas plataformas de intermediação de serviços, como as de transporte individual, hospedagem e entrega. Esses serviços são percebidos por nós não apenas como grandes facilidades no cotidiano, mas como um novo modelo de consumo indispensável, do qual não é possível abrir mão, principalmente durante uma pandemia. Ainda que reconheçamos essas facilidades, é necessário identificar também o impacto desses serviços na forma como a cidade se organiza: justamente por se tornarem tão cruciais, podem ter efeitos coletivos não desejáveis como, por exemplo, o aumento de preços de aluguéis, que pode afetar o direito à moradia. Também significam uma concentração de dados sobre determinadas relações que se desenvolvem nas cidades nas mãos de poucas empresas. Você sabe, por exemplo, a quantidade de entregas de refeições feitas na cidade todos os dias e quantas pessoas trabalham nas ruas para isso acontecer? É importante que governos e sociedade possam conhecer esses dados para pensar políticas públicas para melhorar a vida nas cidades.
Para atingir tudo isso, cidades precisam ter autonomia, senso de prioridade, estratégias de desenvolvimento, planejamento de longo prazo e compromisso com a promoção de direitos para toda a população. Isso significa desenvolver suas capacidades de análise dessa nova realidade (ou seja, ter diagnósticos bem formulados sobre os problemas coletivos) e traçar, com participação social de qualidade, estratégias para resolvê-los.
Também é importante que cidades desenvolvam e atualizem continuamente infraestruturas e capacidades que atendam ao bem coletivo e protejam direitos da população, a fim de que não se tornem reféns tecnológicas de outros atores, incapazes de participar da definição do futuro coletivo. Boas práticas neste sentido são a capacidade de produção de dados sobre a realidade das cidades e a existência de órgãos governamentais com atribuição de impulsionar e avaliar estrategicamente (à luz de um projeto para a cidade) as necessidades de aquisições de tecnologia pelo poder público.
Ao mesmo tempo, outro tema inevitável relacionado a tecnologias e cidades se refere ao desenvolvimento econômico e vantagens competitivas. Para se inserirem nas cadeias de negócios, cidades precisam possuir uma boa infraestrutura tecnológica. E é papel também do poder público garantir um ambiente favorável para o desenvolvimento tecnológico e a inclusão econômica. Digitalizar serviços públicos para facilitar a vida das empresas é um exemplo disso. Foi com esse objetivo que, como Secretário Municipal de Tecnologia e Inovação, desenvolvi o Empreenda Fácil, iniciativa que reduziu, de meses para menos de 4 dias, o tempo para abertura, licenciamento e fechamento de empresas de baixo risco no município de São Paulo.
Por fim, é necessário que o poder público não se esqueça da tarefa de não deixar ninguém para trás. Para isso, é fundamental pensar em ações para inclusão digital e acesso a tecnologias de informação e da comunicação. A tecnologia e a inovação podem, ainda, ser utilizadas de modo estratégico para impulsionar padrões sustentáveis de produção e consumo. Apoiar o acesso de agricultores familiares, que se localizam na área rural de municípios, a novos conhecimentos é um exemplo possível.
Afinal, uma cidade de fato inteligente é aquela capaz de integrar a todos e todas no seu novo patamar de desenvolvimento, bem como de conciliar o desenvolvimento econômico com a sustentabilidade ambiental e a justiça social, como apontam os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, e também com a participação social. Para que essas políticas sejam efetivas, é fundamental que conheçamos a fundo a realidade das nossas cidades, que não são todas iguais entre si. No caso de São Paulo, isso se aplica também às suas divisões administrativas internas, já que temos uma cidade muito socialmente desigual.
Todas essas facetas da relação entre cidades e tecnologias demonstram que não há respostas fáceis. Não se trata de escolher o interesse público em detrimento de interesses privados (afinal, uma cidade mais justa precisa também de desenvolvimento e inclusão econômica), mas de entender as contradições entre eles e, sobretudo, de compreender o papel do poder público em proteger as necessidades coletivas e de promover direitos e justiça social e de construir estratégias que utilizem tecnologias como pontes para um futuro mais simples, inclusivo e sustentável para nossas cidades.
Daniel Annenberg é formado em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP). Foi um dos idealizadores do Poupatempo e seu superintendente por quase 10 anos (1996-2006). Atuou como Diretor-presidente do Detran-SP (2011-2016), Secretário Municipal de Inovação e Tecnologia (2017-2019) e Vereador de São Paulo (2017-2020). Atualmente é consultor da Fundação Vanzolini e um dos professores do curso Implementando Cidades Inteligentes e Humanas.
Marianna Sampaio é mestra e doutoranda em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP, bacharela em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) Atua como analista de políticas públicas e gestão governamental da Prefeitura de São Paulo. Foi secretária-adjunta de Inovação e Tecnologia (2017-2019) e de Negócios Jurídicos (2014) na cidade de São Paulo e é uma das professoras do curso Implementando Cidades Inteligentes e Humanas.