Fundação Vanzolini

Educação e Tecnologia

16 de junho de 2021 | 9min de leitura
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Por Vera Cabral

A qualidade do ensino está diretamente associada ao uso da tecnologia?

Uso de tecnologia não é requisito para educação de qualidade. Educação de qualidade é aquela que potencializa a aprendizagem de cada estudante. Mesmo nos dias de hoje, é possível fazer isso sem tecnologia, especialmente se trabalhamos em pequenos grupos.
Mas os atuais desafios são muitos. Educação de qualidade para todos é imperativo em nossas sociedades. Daí decorre o primeiro problema: quantidades enormes de pessoas a serem educadas, com qualidade. Que é agravado pela relativa, e por vezes absoluta, escassez de recursos (financeiros, humanos e físicos) para proporcionar educação de qualidade a todas essas pessoas. E piora, ainda, se considerarmos que as crianças de hoje não conseguem ficar horas a fio sentadas, absorvendo conhecimento, passivamente. Fica claro que as soluções tradicionais não dão conta. Vejamos: (i) Reduzir a quantidade de alunos por professor – se os estados e municípios não dão conta de pagar decentemente as quantidades de professores que já empregam, como fariam para implementar esse tipo de solução? (ii) Ampliar o tempo de permanência dos alunos nas escolas – além de demandar novas construções e gastos crescentes com manutenção de infraestrutura física, equipamentos e gestão, requer também a ampliação da quantidade de professores (ambos teriam que praticamente dobrar, numa conta bem simples); mais que isso: se os alunos não suportam passar 4 ou 5 horas sentados, passivamente “absorvendo” o conhecimento transmitido pelo professor, por que motivo suportariam 7 ou 8 horas? (iii) Tudo isso é agravado pela má qualidade da média da formação dos professores que, apesar de fazerem o máximo, não conseguem suplantar suas próprias deficiências sem a necessária formação continuada e apoio técnico, que têm que ser contínuos e não esporádicos e pontuais, como ocorre até o presente.

Ou seja: não há saída pelo modelo tradicional. Não iremos a lugar nenhum.

A utilização de recursos de tecnologia, associados a inovações de caráter pedagógico, pode nos livrar das armadilhas que a tentativa de manutenção de modelos escolares ultrapassados para dar conta de novas realidades e desafios nos impõe.

A dinâmica das relações de ensino e aprendizagem pode ser totalmente alterada de forma a permitir, por exemplo, que grupos distintos de alunos aprendam em diferentes ritmos, com diferentes estratégias, tendo como referência um mesmo professor. Estratégias e recursos de colaboração permitem que os próprios alunos contribuam significativamente para a aprendizagem do grupo como um todo. A disponibilização de conteúdos específicos na internet, bem como a utilização de aulas (muitas delas livres) na web, viabilizam a expansão da atividade para além do horário escolar, de forma coordenada com o que se trabalha em sala de aula – o que chamamos de ensino híbrido. Requer apenas o planejamento e a coordenação das atividades por parte do professor, e dos alunos, e o acesso a computadores conectados: em casa, na própria escola, num ambiente comunitário, numa lan house etc. (brincadeira? Li uma notícia, já há alguns anos, que o brasileiro que mais contribuía com a Wikipédia era um jovem de Ensino Médio em escola pública de bairro pobre, que o fazia em uma lan house, diariamente.) Há infinitas combinações possíveis de abordagens pedagógicas associadas ao uso de tecnologia com potencial de transformar os processos e os resultados educacionais.

Quais são as principais tendências de uso de tecnologias digitais na educação?

Do meu ponto de vista, a tendência é pararmos de discutir o uso de tecnologias na educação. Isso porque o uso de recursos dessa natureza vem se tornando mais e mais natural nos processos educacionais, apoiando e criando condições para a implantação de práticas pedagógicas mais efetivas, centradas na aprendizagem e no estudante.

Mas do ponto de vista das principais tendências da incorporação de novas tecnologias no momento, destacaria os recursos que propiciam a personalização da aprendizagem, o ensino híbrido, de forma a permitir que a aprendizagem transcenda a sala de aula; os recursos de cooperação, que permitem o trabalho e a aprendizagem entre pares e novas plataformas e formatos de distribuição e apresentação de conteúdos, entre outros. Acho que essas são categorias mais abrangentes, que incorporam outras e que têm potencial transformador.

É possível mensurar o impacto do uso de tecnologias na aprendizagem? Se sim, quais os mais significativos?

Avaliações de impacto pressupõem experiências controladas. Até recentemente, muitas das avaliações de impacto sobre o uso de tecnologias na educação não mostram resultados significativamente positivos. Minha avaliação é de que elas partem de pressupostos errados. O que se procura medir é o impacto da tecnologia, controladas todas as demais variáveis. E já sabemos que isso não é mesmo efetivo. O uso de tecnologia na educação só é efetivo quando associado a transformações de caráter pedagógico. Portanto, não é tão simples controlar o experimento: muitas são as variáveis que se alteram.

Mais que isso, muitas vezes o próprio conceito de resultado está mal definido: esperamos que a introdução de recursos de tecnologia nos leve ao mesmo lugar que a educação tradicional nos leva?

Mas temos sim muitos casos comprovados em que distintas práticas pedagógicas associadas a recursos de tecnologia, todas elas centradas na aprendizagem, e no estudante, promovem importantes ganhos de aprendizagem, de envolvimento e de postura dos alunos e professores face à educação e à escola.

Como você avalia as tendências do mercado no desenvolvimento e oferta de ferramentas e soluções tecnológicas para o ambiente educacional
Uma coisa a ser destacada é que o avanço tecnológico permite que, a cada dia, novas soluções para contribuir para o processo de aprendizagem possam ser criadas. O limite está mais no lado pedagógico, de definir demandas, do que do lado da oferta, de entregar as soluções demandadas. Um exemplo interessante são os desafios promovidos pelo Departamento de Educação da cidade de Nova York (EUA), por meio de seu centro de inovações (iZone). A partir da identificação de demandas da rede de escolas, são lançados editais para empresas que queiram desenvolver soluções específicas que respondam a tais demandas. Os projetos apresentados são avaliados pelos próprios professores da rede e os ganhadores recebem recursos para seu desenvolvimento.

Mesmo em locais onde esse tipo de mecanismo não existe, a aproximação dos profissionais da educação com desenvolvedores de soluções tecnológicas vem produzindo resultados fantásticos. Até bem recentemente, tentava-se adaptar produtos existentes às necessidades do setor educação. Hoje, há uma enorme gama de soluções específicas para educação e essa é uma tendência sem volta.

Quais obstáculos você identifica para a disseminação do uso de tecnologias nas redes públicas de ensino na Educação Básica?

Para além da questão da conectividade, que é, sem dúvida, um limitante, eu vejo a falta de incentivo e apoio à inovação nas redes e escolas como o maior obstáculo. Temos exemplos de professores e de escolas que inovam nas condições mais improváveis. Mas o conservadorismo, no sentido de apego ao passado, prevalece: “Se dava certo antes, por que não vai dar agora? Culpa dos alunos, que são desinteressados e não têm disciplina!”. Esse é o discurso tradicional, que expressa, além de conflito de gerações e de posturas arcaicas, a falta de disponibilidade para se avaliar o contexto e o problema mais grave da educação de hoje: a incompatibilidade do modelo tradicional ao mundo em que vivemos.
O que vemos hoje é que, na maioria dos casos, a decisão de buscar novos caminhos para se desprender dos modelos tradicionais e trabalhar a aprendizagem de formas inovadoras é individual, sem qualquer apoio e por vezes até à revelia da direção da escola. O que é muito limitante.
E é exatamente nas redes públicas onde o potencial transformador das inovações educacionais apoiadas em recursos de tecnologia poderiam ter o maior impacto: mitigando as deficiências e ampliando o potencial de aprendizagem das crianças e jovens.

Qual é a finalidade da Bett e quais foram os critérios utilizados para curadoria de conteúdos e participantes?

A Bett, maior evento mundial de inovação e tecnologia em educação, com tradição de mais de 30 anos no Reino Unido, tem o compromisso de contribuir para a qualidade da educação, de hoje e do futuro, com o foco em inovação. Mas por inovação não se entendem apenas coisas mirabolantes: fazer o que já se fazia, de uma forma diferente e mais efetiva é também inovar.

O evento é composto pelo congresso e pela área de exposições que, ainda que com a perspectiva comum de contribuir para a melhoria da educação, têm objetivos distintos. Ambos trazem conteúdos, mas com caráter distinto: enquanto o foco do congresso é o desenvolvimento profissional de educadores, com atividades estruturadas e com certificação, os conteúdos livres na área de exposição têm caráter mais informativo.

Em ambos os casos, o evento tem por objetivo propiciar a todos os participantes (educadores e expositores) uma jornada relevante e prazerosa de aprendizagens, atualização e troca de experiências. Garantir a aproximação entre expositores e visitantes é também nossa meta, não apenas para a geração de negócios imediatos, mas para a potencial identificação de demandas que alimentem o desenvolvimento de novas soluções.
Os conteúdos são organizados de forma a propiciar formação aos educadores para amparar o aprimoramento de suas práticas e promover inovações em salas de aula e em escolas.


Vera Cabral
 é diretora executiva da Abrelivros e consultora educacional da Bett Brasil Educar. Foi responsável pela implantação da Escola de Formação de Professores “Paulo Renato Costa Souza”, atuou como consultora em diversos programas e projetos educacionais junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento, Unesco, PNUD e Ministério da Educação. É economista, mestre em Teoria Econômica pela Faculdade de Economia e Administração da USP e tem os créditos de doutorado em Economia Social na Unicamp.