Fundação Vanzolini

Desigualdades digitais: desafios para o presente e futuro das cidades

Postado em Soluções | 23 de setembro de 2021 | 5min de leitura
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Por Daniel Annenberg e Marianna Sampaio

As medidas de distanciamento social adotadas para impedir o avanço do coronavírus evidenciaram a importância do uso de tecnologias digitais pelo Estado e pelos cidadãos e cidadãs. Temos debatido mais sobre proteção de dados, transformação digital do Estado, cidadania e democracia virtuais, educação à distância, inovação social e meio ambiente – temas importantes para imaginarmos, democraticamente, novos modos de organização da vida coletiva. Hoje proponho uma reflexão sobre as relações entre desigualdades socioeconômicas e desigualdades digitais, tema importante para o presente e futuro das cidades.

Cada vez mais as oportunidades de emprego, os serviços básicos e as políticas públicas utilizam tecnologias digitais. Isso exige que os cidadãos e as cidadãs estejam aptos a utilizá-las no trabalho, no seu cotidiano e ao se relacionar com o Poder Público. Nesse cenário, três fatores constituem as desigualdades digitais: (i) acesso, (ii) habilidade e (iii) tipos de uso da internet e tecnologia dos diferentes grupos e setores sociais. A desigualdade de acesso ocorre quando os indivíduos não têm as mesmas condições para obter dispositivos digitais e conexão à internet. A desigualdade de habilidade diz respeito às distintas habilidades dos indivíduos para utilizar tecnologia digital em seu cotidiano. Por fim, as diferentes formas como indivíduos usam e se apropriam da internet e da tecnologia podem trazer benefícios como conexão social, solidariedade e engajamento cívico, por exemplo, ou prejuízos, como desinformação, fraudes e riscos ao direito à privacidade.

Essas três dimensões que compõem a desigualdade digital são afetadas pelas desigualdades socioeconômicas: estudos apontam que características como idade, renda, escolaridade, gênero e raça afetam as condições de acesso, as habilidades e os resultados do uso de tecnologia entre diferentes grupos sociais. A escolha do governo federal de usar um aplicativo para entregar o auxílio emergencial expôs que a população socialmente vulnerável é também desprivilegiada do ponto de vista do acesso, das habilidades e dos tipos de uso que faz da tecnologia. Não faltaram notícias sobre pessoas que foram alvo de fraudes e vivenciaram dificuldades para solicitar o auxílio emergencial.

Isso porque as desigualdades sociais e econômicas são reproduzidas digitalmente. Estudiosos da Universidade de Northeastern e do Sul da Califórnia, nos Estados Unidos, identificaram que o algoritmos do Facebook direcionam anúncios de casas à venda de forma desigual a usuários brancos e negros. O algoritmo é enviesado racialmente e reproduz digitalmente a prática de corretores de imóveis, que, em algumas regiões dos Estados Unidos, mostram às pessoas brancas casas em bairros majoritariamente brancos, com maior oferta de serviços e infraestrutura, enquanto mostram às pessoas negras casas em áreas mais diversificadas racialmente e com menor oferta de serviços. Ao ser replicada na esfera digital, a prática de segregação e desigualdade racial se perpetua na vida real.

Quando debatemos sobre a transformação digital do Estado e construção de cidades inteligentes, devemos considerar o caráter multidimensional das desigualdades digitais e seus possíveis efeitos. Políticas de inclusão digital, como o WiFi LivreSP, Fab Lab Livre e Telecentros em São Paulo, são imprescindíveis, pois combatem a desigualdade digital na dimensão de acesso e habilidades. Ainda há muito o que discutir em relação à dimensão dos diferentes usos, mas é razoável supor que investimentos em educação e emprego, por exemplo, podem ajudar a diminuir as desigualdades no uso da internet e de dispositivos digitais.

Por fim, é importante refletir sobre as ferramentas digitais de processamento e análise de dados do Estado, sejam as que automatizam a análise de elegibilidade dos cidadãos e cidadãs às políticas públicas (como é o caso do auxílio emergencial), sejam relacionadas à gestão das cidades (como o sistema de policiamento preditivo). As cidades devem utilizar tecnologia para melhorar o atendimento ao cidadão, reduzir as desigualdades e tornar a vida mais simples e sustentável. Mas cidades organizadas com foco no cidadão são inteligentes apenas quando também são humanas.

Daniel Annenberg é formado em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP). Foi um dos idealizadores do Poupatempo e seu superintendente por quase 10 anos (1996-2006). Atuou como Diretor-presidente do Detran-SP (2011-2016), Secretário Municipal de Inovação e Tecnologia (2017-2019) e Vereador de São Paulo (2017-2020). Atualmente é consultor da Fundação Vanzolini e um dos professores do curso Implementando Cidades Inteligentes e Humanas.

Marianna Sampaio é mestra e doutoranda em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP, bacharela em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) Atua como analista de políticas públicas e gestão governamental da Prefeitura de São Paulo. Foi secretária-adjunta de Inovação e Tecnologia (2017-2019) e de Negócios Jurídicos (2014) na cidade de São Paulo e é uma das professoras do curso Implementando Cidades Inteligentes e Humanas.